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O GRANDE ORADOR

Primeiro filme samoano da história mostra que a força do argumento reside na língua e não na lança.


Por FELIPE VIVEIROS*


O estilo de vida de Samoa é algo raro de se encontrar nas manchetes da imprensa. Com exceção da seleção de rúgbi, que encanta nas Copas do Mundo do esporte, o Estado soberano da Oceania tem passado desapercebido pela mídia em geral... Até pouco tempo. Com uma escalação de atores nativos, narração em língua samoana e transmissão em Samoa, o cineasta Tusi Tamasese levou a bola até a linha do gol e conquistou, com público internacional nas arquibancadas, mais uma vitória do país: o primeiro longa-metragem samoano da história.


Samoa tem duas filhas, as ilhas ocidentais de Savai'i e Upolu, que juntas, são o lar de 180.000 pessoas. Filmado em uma vila no interior de Upolu, O Orador (2011) harmoniza cultura oceânica com drama. “Ah, um filme étnico!” Não. A produção tem muito mais a oferecer do que curiosidade antropológica, é janela para outro mundo. Com boa fotografia e ritmo contemplativo, o espectador é apresentado, de maneira gradual, ao Fa'a Samoa, o Samoan way of life. Apesar de séculos de influência europeia e décadas de colonialismo alemão e neozelandês, o país manteve seus costumes históricos, sistemas sociais e linguagem. Fa'a Samoaé um estilo de vida baseado nos princípios de amor (alofa), respeito mútuo (faaaloalo), reciprocidade (feosia'i) e apoio mútuo (felagolagoma'i).


A destaque principal de O Orador é a própria Samoa.


A estreia do país no cinema explora uma trama que evidencia as tradições do tempo e os complexos rituais cerimoniais de seu povo. O Orador nos apresenta um herói improvável, Saili (Fa'afiaula Sagote), anão camponês que cultiva inhame e vive com sua esposa Vaaiga (Tausili Pushparaj) e sua filha de 17 anos, Litia (Salamasina Mataia).


foto: divulgação


Saili e sua esposa são marginalizados. Ele, porque sofre de nanismo, e ela porque foi banida da própria vila ao conceber uma filha fora do casamento. O banimento, conhecido como faate'a na cultura samoana, implica que o “infrator” – vivo ou morto – resida fora dos limites da aldeia. Embora Saili seja filho do último chefe da comunidade, não herdou o respeito do pai. É hostilizado e ridicularizado por tentar seguir seus passos e está em constante conflito com vizinhos que insistem em plantar inhame, ao redor do túmulo do antigo chefe. A morte não tem lugar em Samoa. Todo samoano que vive sua cultura fala com os mortos e o diálogo com eles é a essência de um ser espiritual. A interação com os que partiram fornece direção para a vida. Mas, não quando coberta de inhame. Uma falta de respeito.


O irmão de Vaaiga, tenta convencê-la a voltar para a família e a jovem mulher insiste em viver com o homem anão e sua filha “ilegítima”, que tem um affair com um homem casado. Os fios da história são tecidos de maneira independente e, com o desenrolar dos acontecimentos, os três conflitos se cruzam e se descontrolam. A primeira produção samoana está longe de mostrar o país no clichê de um cartão postal e revela, de maneira corajosa e sútil, as raízes tradicionais de uma complexa e antiga cultura.


foto: divulgação


O affair da filha Litia traz problemas para a casa, a esposa fica doente. O pequeno Saili busca grandiosidade na força bruta para resolver seus problemas e se envolve, até mesmo, em luta de pedras com os membros da vila. Saili não é homem de desenvoltura, é mestre da comunicação não verbal. Quieto e vigilante, ele fala com os olhos. O debate em silêncio lhe dá auto respeito, mesmo quando orgulho e vingança dos outros ameaçam ser as pedras de sua própria ruína. A força física não conquista respeito em Samoa. A cultura do país da Oceania é centrada em torno do princípio de vāfealoa'i, as relações entre as pessoas. Não são pedras que são exigidas pela comunidade, e sim palavras.


A câmera é quase sempre baixa, refletindo a altura de Saili e também a prática cultural samoana de olhar fixo para o chão para transmitir humildade. É preciso escutar o diálogo entre os antepassados e a alma. Ninguém nasce grande. A mensagem do cineasta samoano revela, de maneira sensível, que a altura de uma pessoa não reflete sua estatura. A responsabilidade familiar se constrói na própria expectativa da sociedade. O pequeno homem tem que estar à altura do desafio da vida e provar que laços de amor podem superar os de sangue. Tanto o marido anão quanto a esposa de estatura média compartilham o rótulo de forasteiros. Sua relação é de conforto e apoio, e palavras nem sempre são necessárias para expressar profunda cumplicidade.


Após um fato gravíssimo, Saili deve participar de uma cerimônia com oratória pública diante da aldeia que tanto o desprezou. O roteiro se desenrola com grande precisão, espelhando a destreza e paciência necessárias para tecer os tapetes da vida em folha de palmeira, característica proeminente no país. A cultura oratória é forte em Samoa, com estilo e linguagem próprios, principalmente porque a comunicação antes da chegada dos europeus era, de maneira predominante, oral. A cultura samoana criou suas formas únicas de resolver problemas, através de uma disputa verbal, um substituto para a guerra. No país, a força do argumento reside na língua e não na lança.


A estreia da seleção samoana de cinema desenvolve técnicas estilísticas nas quais as armas para o duelo são as palavras, e não ação como estão acostumados os samoanos do rúgbi. Tanto no cinema quanto no esporte nacional, o herói deve ficar de pé se quiser triunfar. O silêncio e o tamanho do capitão do time não são ironia. Saili é o ritmo paciente e observador que dá tempo para que gestos sutis ganhem o jogo. O silêncio e a quietude abrem espaço para que o orador possa surpreender.


*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).



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